terça-feira, 18 de dezembro de 2012

psycho - Clara Averbuck


Baby, you're driving me crazy
I said baby, you're driving me crazy
The way you turn me on
then you shot me down
well, tell me baby
am I justyourclown?
-THESONICS

Eu era uma escritora bêbada, perdida em uma cidade enorme e sem nenhum lugar decente. Saudosista do rock de ontem e amante do rock de hoje que soa como o de ontem. Um livro publicado, nenhum di­nheiro no bolso. Alguns frilas me salvavam, as contas dos bares au­mentavam, os amigos emprestavam dinheiro quando podiam. Mamãe e papai, coitados, falidos e fodidos, ajudavam quando podiam. Sem amor e com poucos amigos, me restaram as minhas droguinhas con­troladas pelo Doutor Fajuto, que não controlava porra nenhuma além de sua própria conta bancária; desde que você pagasse a consulta, es­tava tudo certo. 0 convênio pagava, então ele me mantinha feliz com as minhas receitas azuis. Sem amor. Quase murchando.
Então eu me apaixonei.

Só poderia mesmo me apaixonar pelo dono de um bar. Se bem que me apaixonaria de qualquer jeito, fosse ele um geólogo ou um advogado ou um torneiro mecânico. Mas era dono de um bar, e lá estava ele sentado no sofá, debaixo de uma garota, em cima de uma poltrona. A odiei . A garota, não a poltrona. Quis que morresse, que sumisse. Tinha cara de burra. Feia. Boba. Chata. Namorada. Ignorei. Fingi que ela não existia e puxei papo. Em dois minutos eu estava apaixonada. Ela saiu e o papo engatou até o ponto em que ele dis­se "parei, deixa eu parar com isso", todo perturbado. E eu soube que era ele. E era mesmo. No dia seguinte ela não estava lá e foi lindo, foi como voltar para casa depois da guerra, como uma janela aber­ta na minha alma claustrofóbica, nós dois girando no meio dos dis­cos, nós dois grudados, nós dois um. Então ele estragou a minha noite falando que era devotado à namorada. Devotado. Apagaram a luz, fecharam a porta. Devoção. Eu também já fui devotada, mas pelos motivos certos. E pela pessoa errada. Fui embora a pé, sozi­nha, falando sozinha na rua de manhã. Sozinha. Bêbada. Quase sem memória.
Merda, merda. Quero lembrar. Quero saber tudo, mas não sei. Quero pisar na cara da sensação de ridículo. Sumir esse gosto da boca. Me encher de tabefes pra ver se eu paro com essa merda toda. Um creminho, sabe, pra tirar a maquiagem borrada. Como uma coisinha tão pequena pode me derrubar com tanta força? Bolinhas no chão, no meio do caminho, blam. Ploft. Olha lá a mina estirada no chão, toda fodida, sentada na porta do metrô. Chutem o rabo dela por mim.
Ah, foda-se.
Focof.
Não fala antes de saber, não comenta antes de ler, não seja espertinho comigo, querido. Não comigo.
Olha a mina caminhando de manhã na rua, bem pequenininha, todo mundo olhando. Olha a cara dela, aquela cara de idiota. Olha amina se perdendo no metrô, oh, a grande & assustadora mina com um metro e meio de altura e diminuindo, diminuindo, cabendo no bolso de alguém. Indo pra casa sozinha no meio de todos aqueles prédios tagarelas e daquelas pessoas de gravata. Dando telefonemas absolu­tamente patéticos para sua única amiga, tentando achar um lugar macio pra deitar. Olha, olha, olha ela sem dinheiro de novo, toda fodida. Que maldição. Meu avô disse que o amor é um cão do inferno, Arturo disse que o amor é feio, que é uma cicatríz na palma da nossa mão. Arturo, como eu queria que você estivesse errado. Que o amor fosse bonito e construísse casinhas e famílias e tudo. Damn, damn, damn. Olha a cicatríz na palma da minha mão sangrando de novo. Olha a mina, que babaca, ainda acreditando em alguma coisa. Ela não aprende, não quer aprender, recusa-se. Ela também não sofre de pena e autoco miseração inúteis, não se perde nessas coisas. Mas se perde o tempo todo porque escolhe se perder. Olha o sol cegando a noite, dor nos pés, a mina falando sozinha e andando sozinha e indo para lugar ne­nhum. Mas ela vai, ela caminha porque não consegue ficar parada. As bolinhas voltaram junto com o enjôo de manhã. As coisas voltam o tempo todo, será que estou andando em círculos? Nesse caso, melhor seria ficar parada. Quietinha. Sem respirar. Mas eu não consigo. Corre, corre, vai, rápido. Corre pra chegar logo em lugar algum.
Correndo, correndo, voltei ao bar na noite segunda, no cantinho com meus amigos, bem longe, era um lugar público, não era? Eu poderia ir lá se quisesse, mesmo que ele fosse devotado, aquele filho da puta que afagou meu coração pra me mandar embora. No fim da noite, fui pagar a conta e ganhei um beijo de troco, assim, sem aviso, por cima do balcão, como um tapa pela minha ousadia de aparecer lá. Só um beijo e lá estava eu sozinha de novo, indo embora sozinha, de novo sozinha, a louca. Bêbada de novo, cheia de bolinhas na ca­beça. Cansada dessa história, sempre a mesma coisa, sempre a mes­ma rejeição. Sempre trocada.
Já me sentindo um caroço morto no canto do prato, atendo a porta de casa e lá está ele sorrindo o sorriso mais lindo do mundo, aqueles olhos, ai meu deus aqueles olhos dele. Ficamos bêbados e ele me deu um tapa na cara. "Sua filha da puta. Você é minha. Minha, entendeu? Minha!" Entendi. Fomos para o bar, ligamos a jukebox e ficamos lá no sofá de zebrinha escutando Sonics. Oh baby, you're driving me crazy. Estávamos ficando loucos, os dois. Ele por causa de mim, eu por causa dele, nós dois por causa da namorada. Uma na­morada de seis anos não se larga assim. Eu discordava, foda-se a sua namorada, foda-se tudo, vamos fugir daqui. Nós bebíamos demais e brigávamos, rolávamos pelo chão e acabávamos trepando. A síndica reclamava. Cartas chegavam reclamando do barulho. Os dias passan­do, o telefone tocando e ele finalmente contando tudo para a na­morada. Lágrimas, escândalo. Queria conversar comigo e me dizer "umas poucas e boas". 0 quê, exatamente? Deveria me desculpar por amar o namorado dela? Deveria me sentir culpada? Não desculpe, eu não sou assim, eu vou lá e pego, porque ele era meu, ele nasceu para mim, me desculpe, você está sentada no meu lugar, garota. Ele chorava e dizia que não queria fazer ninguém sofrer. Eu olhava e queria chorar também, porque todo mundo estava sofrendo demais e tudo era horrível e lindo. Ele dormia comigo e saía correndo de manhã, morrendo de culpa.
Até que um dia ele ficou. Quatro , cinco da tarde de segunda-feira. Ele ficou. 0 dia inteiro enroscado nos lençóis comigo, a noite inteira e mais uma manhã. Foi ficando. Voltava todos os dias. Nunca mais foi embora. Agora ele está ali, deitado na cama, na nossa casa, cui­dando da nossa filha enquanto os ônibus e a vida passam. E a síndica parou de reclamar.

psycho - Clara Averbuck - todos os créditos.




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