sábado, 18 de janeiro de 2014

tem aqui um homem.
ele ama.
ele beija.
ele trepa.
ele crê.
tem aqui um cara.
ele não quer ser recortado.
ele não quer ser feito aos pedaços.
ele não quer que esse poema, para que o segundo verso valha
tenha que perder qualquer um dos outros versos.
tem aqui um homem que é um poema inteiro.

um poema inteiro.

ramoncjaneiro2014.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

             “alzheimer”.
            “alzheimer... é alzheimer que ele tem”. foi o que disse a doutora enquanto escrevia numa folha de prontuário. uma folha branca que aos poucos ia-se formando diagnóstico. diagnóstico. formando palavras de sentença. de penitência. aquela palavra dolorida que significa que tudo muda de cá, desse segundo, para adiante. “alzheimer. ele tem alzheimer”, eu repetia internamente. “ele esquecerá”.
            “ele esquecerá?” “ “alzheimer, é por conta do alzheimer que ele tem”, foi esse o diálogo que se repetiu. “vai esquecer do que?” “dos nomes. dos rostos. a verdade é que, nessa coisa... como é o nome?... nessa coisa a gente se esquece mesmo os rostos? o que você comeu ontem? cê tá lembrado, assim na ponta da língua o que você comeu ontem? e como era o nome da sua professora do primário? não é todo mundo que lembra. não é todo mundo que lembra”. “ vai esquecer do que?” “as músicas, você consegue lembrar de todas as letras... ora, é difícil lembrar quando entra o tom”. “quando entra o tom?” “alzheimer... é o alzheimer. deu pra falar besteiras.”
            “do que ele vai esquecer?” “dos nomes, dos rostos... eu já te disse isso!” “eu já te disse isso?” “ele vai esquecer dos nomes por causa do alzheimer, e vai esquecer dos rostos, e dos toques... eu já disse que ele vai esquecer das músicas?” “é por causa do alzheimer”. “ele vai esquecer... dela?” “coitada dela!” “ela já morreu mesmo, e o alzheimer agora o fará esquecer. é, finalmente, o alzheimer o fará esquecer dela...” “e ela?” “ela já está morta”.
            “eu queria me lembrar dela. como era, ela tinha aquela voz sempre no tom... ela tinha aquele rosto? como era o rosto? como era mesmo o rosto dela? ah, ela chamava... como era o nome dela? perdão... o alzheimer, é alzheimer o que eu tenho. ele me faz esquecer os nomes. eu disse que o alzheimer me faz esquecer dos nomes? eu lembro do cheiro. era aveludado... você põe os pés na areia, na praia, pela manhã, no outono, e sente. isso... era assim, era a areia da praia pela manhã, era assim... mas o nome. perdão, é o alzheimer, rsrsrs... eu não consigo lembrar por causa do alzheimer. eu tô bem. claro, que tô”.
            “mas e de mim? e de nós? vai esquecer?” “é... alzheimer... o alzheimer é foda. tem que ficar repetindo, se você ficar repetindo forte na cabeça dele, ficar martelando, sabe? o nome, mostrando a cara, ele não esquece, não. na verdade ele esquece, mas ele lembra todo dia...”
“oiiiiiiiiiii!!! souuuu euuuu! tááááa lembradooooo de miiiiiiimmmmm?” não adianta, é o alzheimer. deixa ele aí. ele fica aí... “ficaaaaa bemmm, táááá? ficaaaa bemmmm!!!”. “ele esqueceu mesmo”. “é... a porra do alzheimer. é o alzheimer é uma merda. se pôr ele no espelho não se reconhece. não sabe quem é. quer ver?  ó, quem é?” “(ALZHEIMER ALLLZHEIIIIMERRRR, ALLLLLLLZZZZZHHHHEEEIIIIMERRR)” “viu?, não lembra... é o alzheimer...não sabe quem ele é. deixou de ser... ele esqueceu quem foi. deixou de ser aos poucos... eu trago a galera aqui, às vezes pra não deixar ele cansado, pra galera ver como é foda não saber quem é. como é foda esquecer”.
            “al... zeiiii... alzeimi?” “AALLLLLzheimer. ele tem alzheimer. não faz nada, não. fica ai... bonitinho. esqueceu de tudo. usa fraudas. fica aí. o dia passa e ele fica com essa cara de quem está esperando o trem. trem pra onde? só se for pra bandas... vixe... pras bandas de onde não se diz...”
“ai, tadinho!”.”é o... o alzheimer. o alzheimer é foda. esqueceu de tudo, tá aí...esperando a morte”. “ ai, tadinho!!” “ a gente repetia o nome, punha a cara. você sabe, eles logo esquecem os nomes e as caras, é um sintoma... é uma sentença. esquecem tá aí esperando a morte. tá só esperando.
            “ah, alzheimer...”          
            “morreu disso?”
            “ eu não me lembro dele, nem lembro como ele chamava. só tem essa foto aí. ah, foi melhor assim, ele fico bem. ele fico bem. morreu, mas... como era o nome dele? ah, sei que tinha alzheimer. eu só lembro dele por causa dessa foto aí. estava velho. se esqueceu até quem era. esqueceu quem era. “ah, todo mundo esquece”.

ah, todo mundo esquece.
ramoncjaneiro2014.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

                           à noite, a temperatura do dia abaixou uns dez graus. menos no quarto. a janela aberta não dava conta da sensação de calor. o ventilador não minimizava um terço da temperatura. na tez do rosto, o suor escorria com volume de mina. o suor fazia nos sulcos da pele pequenas poças de água salgada. como pequenas piscinas salgadas comuns no litoral cearense.um inseto, o mais desejoso por pele e sangue, pousou suave em sua pele, tocou seu colo. foi suave o suficiente para ser notado e, mesmo assim, não ser repelido . ele penetrou sua pele, tocou seu sangue. comeu.
            quem nos visita durante o sonho? deuses? espíritos? outras vidas? o inconsciente inconformado com a anulação dos desejos? naquela noite, ela pulou a cerca dos carneirinhos e foi tocada. foi beijada. desejou. não houve uma parte de seu corpo sem visitação. tudo foi amado. um amor despudorado que a tocava com o corpo. definitivamente não era uma relação fálica. era o corpo a corpo, o cheiro, o toque, a saliva, o pulso. as sensações. calor.
            subia por suas coxas uma ânsia sufocante que tinha, nevrálgicamente, contato com os pulmões que se enchiam de ar como duas bexigas de festa. seus pelos arqueavam e o suor resfriava o corpo em água. ela toda estava úmida. molhada. não havia um ponto seco. e sua boca se enchia ainda mais de saliva ácida e corrosiva. suas penas abertas em Vênus. a Vênus comportada e cristã de Botticelli.
            quem suportaria o desejo além do sonho? quem pode despertar de si o si que há por dentro? quem suporta um calor de dezembro o ano todo? abriu os olhos, que arderam depois que a retina tocou o sal do suor. aumentou a potência do ventilador. e , depois de ter sido tocada, voltou a dormir. não teve disposição para matar o inseto.
            o inseto, que amanhã estaria de novo desejoso, está noite dormiu depois de comer, um sono de homem.

o inseto teve sono de homem.
ramoncjaneiro2014.

sábado, 4 de janeiro de 2014

                é verão em são paulo. a temperatura pode variar, em minutos, de 30 a 17 graus. vem calor... vem umidade...tempestade. o homem não nasce paulistano, a cidade o devora. mutila. transforma. ama. ama. ama. vemos, aqui, nos metrôs, nos trens, ônibus e calçadas, seres anfíbios que não se molham. altamente preparados e impermeabilizados ao ambiente úmido, pantanoso e árido, na mesma proporção paradoxal. aos paulistanos não afeta uma gota de água ou lágrima. tudo é sequidão no charco. há sertão e lodo aqui. mas não nasce nenhum mandacaru florido, e as garças e capivaras estão sujas, principalmente de desamor.
            se você pôr, do paris 6 à botica da esquina, os olhos na rua, verá gente apressada, atrasada, com medo de assalto, de drogado. de gente. as pessoas aqui têm medo porque ele, o medo, é boa massa impermeabilizadora. viver sem medo pode, em são paulo, molhar o rosto, os sapatos, e os corações. e as pessoas daqui pouco se atrevem.
            vendo assim, você pode dizer “está aí um carioca, saudoso, apaixonado”,.” um nordestino que lembra da ausência que faz na própria terra com saudade”. não... eu sou um adaptado. completamente paulistano. do centro à periferia há pedaços meus jogados em cafés, cinemas, teatros. olhares. quiçá; paixões.
            é nesse ambiente hostil, lhe digo, que acontece o maior número possível de imprevisões negativas e positivas quando um ou outro paulista entrega-se à ausência do medo. um motoboy sem medo, por exemplo, arrisca-se entre os carros depressivos e caí. imprevisivelmente, por isso, o mundo se atrasa num engarrafamento que deixa a cidade, vista de cima, igual a uma árvore de natal reluzente. deu no jornal, um rapaz, destemido, decidiu não aceitar o aumento de vinte centavos na tarifa para o transporte público. fez a revolução. uma moça, sem medo nenhum, olhou pra mim e me sorriu de volta. estava ali, em são paulo, o milagre.

em são paulo, o milagre.

ramoncjaneiro2014.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

  era um pudim em forma de “v”, muito bonito. seu aspecto quente não advertia nada: dava água na boca. escorria-lhe , pelas beiradas, um espessa cauda doce e não enjoativa, tão suculenta quanto a iguaria. parecia pesado, lindo. gostoso.  não se podia dizer, com franqueza, se era tão gostoso quanto parecia, porque , afinal de contas, era a fotografia de um pudizinho em forma de “v”. um pudim que, por anos, eu admirei sem sentir-lhe o gosto.
  é verdade que tia Margarida, a produtora da delícia e da fotografia, dizia:que o gosto estava uma delícia. mas ninguém em casa, pelo que eu sabia até então, nem meus tios, nem meus pais ou primos, tinha comido. aliás, sobre comer aquilo, só  se ouvia rumores da própria tia Margarida: “fizeram “hummmmmmmmm”, como na ana maria braga, quando comeram”. “ tia, Margarida”, perguntávamos eu e os primos, adolescentes, cheios de gula, vigor e hormônios, “ por que a senhora não faz um pudim desses , da foto, pra nós, um pra cada, um por dia, um por hora? assim, nesse mesmo “v”, nesse mesmo líquido escorrendo em nossas bocas, nessa mesma fôrma?”. tia Margarida dizia, “claro”. mas pudim que é bom, só na foto mesmo.
  em festa, uma vez, enquanto eu e meu primos comíamos à mesa pequenos docinhos e as primas com os olhos, especulamos uns com os outros sobre o pudim. pode parecer bobeira, e é, mas a doçura não nos saía da cabeça. sonhávamos. queríamos. desejávamos. era a puberdade.
  “o pudim, não existe!”, disse o mais velho. porra, era o cara mais velho e aquilo nos chocou. ele já tinha comido muito pudim por aí, dizer daquele, naquela segurança, nos abalou. “ tio Solanum, já comeu”, disse o mais novo, tão seguro quanto o mais velho. a informação, mais do que a primeira, me incomodou, e passei a detestar, mesmo sem conhecer direito, tio Solanum, pela petulância, e, principalmente, pelo ciúme!. “quem disse que o tio comeu o doce?” eu perguntei ao menor... e ele, rindo, me disse, “ora, o pudim disse”. não que a raiva tivesse passado, mas, fora ignorada naquele instante. então eu mesmo acreditei, por acreditar, que o pudim tinha me dito coisas... “ eu vou comer o pudim!”, profetizei... riram tanto, meus primos.
  tia Margarida, não faria aquele pudim de novo. não sei se não faria por faltar-lhe tempo, coragem, ou para não estragar a mística por trás da foto do pudim. eu nunca provei, mas era gostoso... é verdade, dava pra saber só de ver... e, de sonho em sonho, acordado ou não, pensava: era um pudim gostoso, digno de uma fotografia.

era um pudim gostoso, digno de uma fotografia.

ramoncjaneiro2014