“alzheimer”.
“alzheimer... é alzheimer que ele
tem”. foi o que disse a doutora enquanto escrevia numa folha de prontuário. uma
folha branca que aos poucos ia-se formando diagnóstico. diagnóstico. formando
palavras de sentença. de penitência. aquela palavra dolorida que significa que
tudo muda de cá, desse segundo, para adiante. “alzheimer. ele tem alzheimer”,
eu repetia internamente. “ele esquecerá”.
“ele esquecerá?” “ “alzheimer, é por
conta do alzheimer que ele tem”, foi esse o diálogo que se repetiu. “vai
esquecer do que?” “dos nomes. dos rostos. a verdade é que, nessa coisa... como
é o nome?... nessa coisa a gente se esquece mesmo os rostos? o que você comeu
ontem? cê tá lembrado, assim na ponta da língua o que você comeu ontem? e como
era o nome da sua professora do primário? não é todo mundo que lembra. não é
todo mundo que lembra”. “ vai esquecer do que?” “as músicas, você consegue
lembrar de todas as letras... ora, é difícil lembrar quando entra o tom”. “quando
entra o tom?” “alzheimer... é o alzheimer. deu pra falar besteiras.”
“do que ele vai esquecer?” “dos
nomes, dos rostos... eu já te disse isso!” “eu já te disse isso?” “ele vai
esquecer dos nomes por causa do alzheimer, e vai esquecer dos rostos, e dos
toques... eu já disse que ele vai esquecer das músicas?” “é por causa do
alzheimer”. “ele vai esquecer... dela?” “coitada dela!” “ela já morreu mesmo, e
o alzheimer agora o fará esquecer. é, finalmente, o alzheimer o fará esquecer
dela...” “e ela?” “ela já está morta”.
“eu queria me lembrar dela. como
era, ela tinha aquela voz sempre no tom... ela tinha aquele rosto? como era o
rosto? como era mesmo o rosto dela? ah, ela chamava... como era o nome dela?
perdão... o alzheimer, é alzheimer o que eu tenho. ele me faz esquecer os
nomes. eu disse que o alzheimer me faz esquecer dos nomes? eu lembro do cheiro.
era aveludado... você põe os pés na areia, na praia, pela manhã, no outono, e
sente. isso... era assim, era a areia da praia pela manhã, era assim... mas o
nome. perdão, é o alzheimer, rsrsrs... eu não consigo lembrar por causa do
alzheimer. eu tô bem. claro, que tô”.
“mas e de mim? e de nós? vai
esquecer?” “é... alzheimer... o alzheimer é foda. tem que ficar repetindo, se
você ficar repetindo forte na cabeça dele, ficar martelando, sabe? o nome,
mostrando a cara, ele não esquece, não. na verdade ele esquece, mas ele lembra
todo dia...”
“oiiiiiiiiiii!!!
souuuu euuuu! tááááa lembradooooo de miiiiiiimmmmm?” não adianta, é o
alzheimer. deixa ele aí. ele fica aí... “ficaaaaa bemmm, táááá? ficaaaa
bemmmm!!!”. “ele esqueceu mesmo”. “é... a porra do alzheimer. é o alzheimer é
uma merda. se pôr ele no espelho não se reconhece. não sabe quem é. quer ver? ó, quem é?” “(ALZHEIMER ALLLZHEIIIIMERRRR,
ALLLLLLLZZZZZHHHHEEEIIIIMERRR)” “viu?, não lembra... é o alzheimer...não sabe
quem ele é. deixou de ser... ele esqueceu quem foi. deixou de ser aos poucos...
eu trago a galera aqui, às vezes pra não deixar ele cansado, pra galera ver
como é foda não saber quem é. como é foda esquecer”.
“al... zeiiii... alzeimi?” “AALLLLLzheimer.
ele tem alzheimer. não faz nada, não. fica ai... bonitinho. esqueceu de tudo.
usa fraudas. fica aí. o dia passa e ele fica com essa cara de quem está esperando
o trem. trem pra onde? só se for pra bandas... vixe... pras bandas de onde não
se diz...”
“ai,
tadinho!”.”é o... o alzheimer. o alzheimer é foda. esqueceu de tudo, tá
aí...esperando a morte”. “ ai, tadinho!!” “ a gente repetia o nome, punha a
cara. você sabe, eles logo esquecem os nomes e as caras, é um sintoma... é uma sentença.
esquecem tá aí esperando a morte. tá só esperando.
“ah, alzheimer...”
“morreu disso?”
“ eu não me lembro dele, nem lembro
como ele chamava. só tem essa foto aí. ah, foi melhor assim, ele fico bem. ele
fico bem. morreu, mas... como era o nome dele? ah, sei que tinha alzheimer. eu
só lembro dele por causa dessa foto aí. estava velho. se esqueceu até quem era.
esqueceu quem era. “ah, todo mundo esquece”.
ah,
todo mundo esquece.
ramoncjaneiro2014.
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