do lado esquerdo da
grande parede de tinta sempre branca rachada pela pouca ação do tempo que pôde
tocar aquele lugar escondido do resto do mundo, a cômoda de carvalho,
antiquíssima, sempre esteve na casa de minha avó. minha avó, tal e qual a cômoda, resistiu ao
tempo de maneira peculiar, nunca esteve jovem aos meus olhos. minha avó sempre
fora velha.
o carvalho já tivera sido consumido
pela ação de cupins, traças e outras pragas que foram, de maneira drástica, ou não,
exorcizadas. a resistência do carvalho,
talvez, justifique a monárquica posição do objeto, que embora pudesse, nunca
foi substituído, ou sequer mudou de posição.
minha avó desde sempre teve uma modesta vida
confortável de uma senhora dona de casa. houve naquela casa velha muitos móveis
é verdade, uma vida farta. meu avô, há muito falecido, tempo o suficiente para
que eu nunca o tivesse conhecido para além das lembranças à mesa, ou no velho
retrato por sobre a cômoda, fora torneiro mecânico toda a sua vida, em uma única
metalúrgica. Quando morreu, deixou muito à minha avó, suprimentos, dinheiro que
fazia entrar e sair eletrodomésticos, uns inclusive que nunca foram utilizados
e permaneciam intactos nas caixas como se fossem troféus ou brinquedos de
colecionador, um grande retrato seu de lambe-lambe que ainda descansa sobre a cômoda
e a tal cômoda de carvalho que, em lendas íntimas, diziam ter pertencido à
família fidalga antes de , por roubou, saque, ou outra coisa que o valha, ter
caído por engano na casa de mãe do meu avó.
o imponente objeto de madeira fica
disposto a todos que o veem, e acima dele há um grande oratório destinado à
nossa senhora, entretanto, houve épocas de haver são sebastião, santa teresinha.
confidencias familiares oram que o primeiro que esteve naquele oratório fora
santo antônio, mas isso já foi há muito tempo. na grande caixa de jacarandá há
cinco gavetas grandes, que , quase como metalinguagem de si, nunca alternaram
os objetos que são portadoras. a
primeira destina-se a guardar as contas que ainda serão pagas na esquerda, e
que já foram pagas na direita. a segunda, porta retratos antigos de minha pai e
de meus tios, há também pequenos pertences como velas de primeira comunhão, e
madeixas de primeiros cortes de cabelos de todos nós. a segunda gaveta nunca é
aberta, sabemos dela e do que ela contém... mas nunca a perturbamos. a terceira
gaveta guarda os panos de prato, ficam ali livres para serem acessados todas as
vezes que minha avó, ou a moça que cuida dela precisa. a quarta gaveta carrega
os livros velhos de receita para culinária, e também os exames médicos de anos
e anos, que minha avó guarda por precaução.
a ultima gaveta é a mais difícil de
ser aberta não apenas pelo desconforto de estar rente ao chão, mas por estar
sempre emperrada pela falta de uso e
pela ferrugem corrosiva de suas articulações. essa era a gaveta do meu avô e ,
por isso, ainda guarda pertences dele,
muito necessários, segundo minha avó e meu pai, para manter a presença do velho
pela casa. há , na gaveta, suas duas gravatas preferidas, seu caderno de cânticos
da igreja, sua caneta tinteiro que nunca fora utilizada para mais que
contracheques, um time de botão do juventus do seu tempo de menino e uma foto
dele abraçado à minha avó enquanto moços, intacta. esse é o único objeto que
está lá que nunca pertenceu a meu avô. minha avó, depois de uns anos que ele
morreu, pôs lá fazendo graça. rimos todos com a brincadeira daquela senhora
redonda e conservada em sua velhice. a fotografia nunca mais saiu dali.
hoje, enquanto almoçávamos,
discutimos o destino do velho móvel de carvalho. todos tinham interesse em ter
o objeto, portanto, ficou para herança. ficou para ser o que sobrar do corpo
morto de minha avó. quando levantamos, vi meu pai soprar no ouvido de minha mãe
“ esse vai pra nossa sala... só não levo a foto do meu pai... ponho a minha”. minha mãe não riu. minha mãe ri pouco, talvez,
por ser uma mulher velha.
Ramon
c/ a cômoda/
Janeiro
2013.
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